O rei
leão, nobre cavalheiro, resolveu certa vez que nenhum de seus súditos haveria de morrer na
ignorância. Que bem maior que
a educação poderia existir?
Convocou o urubu, impecavelmente trajado em sua beca doutoral, companheiro de preferência e de
churrascos, para assumir a responsabilidade de organizar
e redigir a cruzada do saber. Que os bichos precisavam de educação, não
havia dúvidas. O
problema primeiro era o que ensinar. Questão de currículo: estabelecer as coisas sobre
as quais os mestres
iriam falar e os discípulos iriam aprender. Parece que havia acordo entre os
participantes do grupo de
trabalho, todos urubus, é claro: os pensamentos de urubus eram os
mais verdadeiros; o andar de urubu era o mais elegante;
as preferências de nariz
e de língua dos urubus eram as mais adequadas para uma saúde perfeita; a cor dos
urubus era a mais
tranquilizante; o canto dos urubus era o mais bonito. Em suma: o que é bom para os urubus
é bom para o resto
dos bichos. E assim organizaram os currículos, com todo o
rigor e precisão que as últimas conquistas da
didática e da psicologia da aprendizagem podiam merecer. Elaboraram-se sistemas
sofisticados de avaliação para teste da aprendizagem. Os
futuros mestres foram informados da importância do diálogo para que o
ensino fosse mais eficaz e chegavam mesmo, vez por
outra , a citar Martin Buber. Isto tudo sem falar na
parafernália tecnológica que se importou do exterior,
máquinas sofisticadas que podiam repetir as aulas à vontade para os mais
burrinhos, e fascinantes circuitos de televisão Ah! Que beleza! Tudo
aquilo dava uma deliciosa impressão de progresso e eficiência e os
repórteres não se cansavam de
fotografar as luzinhas piscantes das
máquinas que haveriam de produzir o saber, como uma linha de montagem produz um automóvel. Questão de organização,
questão de técnica. Não poderia haver falhas.Começaram
as aulas, de clareza meridiana. Todo mundo entendia. Só que o corpo
rejeitava.Depois de uma aula sobre sobre o cheiro e o gosto bom da
carniça,podiam ver grupinhos de pássaros que
discretamente (para não ofender os mestre)vomitavam atrás das árvores.
Por mais que fizessem ordem unida para aprender o gingado do urubu, bastava que
se pilhassem fora da escola para que voltassem todos os velhos e detestáveis
hábitos de andar. E o pavão e as araras não paravam de cochichar,
caçoando da cor dos urubus: "Preto é a cor mais
bonita? Uma ova..." E assim, as coisas se
desenrolaram, de fracasso a fracasso, a despeito dos métodos cada vez mais científicos
e das estatísticas que subiam. E todos comentavam, sem entender: "A
educação vai muito mal..."
Gosto de histórias porque
elas dizem em poucas palavras o que as análises dizem de forma complicada. Todo
aluno reclama do fracasso da educação.Os alunos de hoje não são como os alunos
de antigamente.Nem mesmo sabem escrever.Que dizer do aprendizado da Ciência esta
coisa tão importante para o projeto País grande potência. E eu fico a me perguntar se o problema não está justamente aqui. Um
bem-te-vi que consiga ser provado com distinção na escola dos urubus (quem sabe
com um daqueles Q.I.s de causar inveja?) pode ser muito inteligente para os
urubus. Bem-te-vi é que ele não é.Não passa de um degenerado.
É que o corpo tem razões que
a didática ignora.Vomitar é doença ou é saúde? Quando o estômago está embrulhado,
aquela terrível sensação de enjoo, todo mundo sabe que o dedo no fundo da garganta provocará a
contração desagradável mas saudável. Fora com a coisa que violenta o corpo!
Nietsche dizia em certo lugar (não consegui encontrar a citação) que ele amava
os estômagos recalcitrantes, exigentes, que escolhiam a sua comida, e detestava
os avestruzes, capazes de passar em todos os testes de inteligência,por sua
habilidade de digerir tudo. Estômago exigente, capaz de resistir e de
vomitar.Em cada vômito uma renúncia: a comida é imprópria para a vida.
E eu me pergunto se este tão
denunciado e tão chorado fracasso da educação nacional não será antes um sinal
de esperança, de que continuamos capazes de discernir o que é bom para o corpo
daquilo que só é bom para o lucro. Esquecer depressa: Não é esta a forma pela
qual a cabeça vomita a comida de urubu que lhe foi imposta?
Uma ideia a ser explorada: Para educar bem-te-vi é preciso gostar de bem-te-vi,
respeitar seu gosto, não ter projeto de transformá-lo em
urubu. Um bem-te-vi será sempre um urubu de segunda
categoria.Talvez para se repensar a educação e o futuro da Ciência,devêssemos
começar não dos currículos cardápios,mas do desejo do corpo que se oferece à
educação.É isto: começar do desejo...
Do Livro Conversas com quem gosta de ensinar
Rubem
Alves
Sempre gostei e procurei explorar esta ideia: somente pode ser um bom educador, quem gosta de criança,para que consiga se preocupar agora com a felicidade da criança e ao mesmo tempo já antevendo a sua posterior realização,o seu sucesso quando adulto.
Esta criança, lindo ser em formação,pequena flor em botão que está hoje aos seus cuidados, se transformará no adulto de amanhã- futuros pais, mães, políticos... que irão garantir ou não o sucesso de uma geração.
Um forte abraço para você. Que seu trabalho seja uma bênção para sua vida e a vida de tanta gente que precisa de você. Muita saúde,sucesso, paz e bem.
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