segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Conversas com Rubem Alves.

O  rei  leão,  nobre  cavalheiro,  resolveu  certa  vez que  nenhum  de  seus súditos haveria de morrer na  ignorância. Que bem maior  que a  educação poderia  existir? Convocou o urubu, impecavelmente  trajado em sua beca doutoral, companheiro de  preferência e de churrascos,  para assumir  a  responsabilidade de organizar e  redigir a  cruzada do saber.  Que  os bichos precisavam de educação, não havia  dúvidas.  O problema primeiro era o que ensinar.  Questão  de currículo: estabelecer as coisas sobre  as  quais os mestres iriam  falar e  os  discípulos  iriam aprender. Parece que havia acordo  entre os  participantes do grupo de trabalho, todos  urubus, é claro: os  pensamentos de urubus eram os mais verdadeiros; o andar de urubu  era o  mais  elegante;  as  preferências  de nariz e de língua dos urubus eram as mais adequadas para  uma  saúde  perfeita; a cor  dos  urubus  era  a mais tranquilizante; o canto  dos  urubus era o mais bonito. Em suma: o que é bom para os urubus é  bom para o resto dos  bichos.  E  assim  organizaram os  currículos,  com  todo  o rigor  e precisão  que as últimas  conquistas  da  didática e  da  psicologia  da aprendizagem podiam merecer. Elaboraram-se    sistemas sofisticados  de  avaliação para teste  da aprendizagem. Os futuros mestres foram informados da  importância do diálogo para que o ensino fosse mais eficaz e   chegavam  mesmo, vez  por outra ,  a  citar  Martin Buber. Isto  tudo  sem  falar  na  parafernália  tecnológica  que se importou do exterior,  máquinas  sofisticadas que podiam repetir as aulas à vontade para os mais  burrinhos, e  fascinantes  circuitos  de televisão Ah!  Que  beleza! Tudo  aquilo  dava  uma    deliciosa impressão de progresso e eficiência e os repórteres não se cansavam de fotografar as luzinhas piscantes das máquinas que haveriam de produzir o saber, como uma linha de montagem produz um automóvel.  Questão de organização, questão  de  técnica. Não poderia  haver    falhas.Começaram as  aulas, de clareza  meridiana. Todo mundo entendia. Só que o corpo rejeitava.Depois de uma aula sobre sobre o cheiro e o gosto bom da carniça,podiam ver grupinhos de pássaros que  discretamente (para não ofender os mestre)vomitavam atrás das árvores. Por mais que fizessem ordem unida para aprender o gingado do urubu, bastava que se pilhassem fora da escola para que voltassem todos os velhos e detestáveis hábitos de andar. E o pavão e as araras não paravam de  cochichar, caçoando  da cor dos urubus:  "Preto  é a cor  mais bonita? Uma ova..." E assim, as  coisas  se  desenrolaram, de fracasso a fracasso, a despeito dos métodos cada vez mais científicos e das estatísticas que subiam. E todos comentavam, sem entender: "A educação vai muito mal..."

Gosto de histórias porque elas dizem em poucas palavras o que as análises dizem de forma complicada. Todo aluno reclama do fracasso da educação.Os alunos de hoje não são como os alunos de antigamente.Nem mesmo sabem escrever.Que dizer do aprendizado da Ciência esta coisa tão importante para o projeto País grande potência. E eu fico a  me perguntar se  o problema não está justamente aqui. Um bem-te-vi que consiga ser provado com distinção na escola dos urubus (quem sabe com um daqueles Q.I.s de causar inveja?) pode ser muito inteligente para os urubus. Bem-te-vi é que ele não é.Não passa de um degenerado.

É que o corpo tem razões que a didática ignora.Vomitar é doença ou é saúde? Quando o estômago está embrulhado, aquela terrível sensação de enjoo, todo mundo sabe  que o dedo no fundo da garganta provocará a contração desagradável mas saudável. Fora com a coisa que violenta o corpo! Nietsche dizia em certo lugar (não consegui encontrar a citação) que ele amava os estômagos recalcitrantes, exigentes, que escolhiam a sua comida, e detestava os avestruzes, capazes de passar em todos os testes de inteligência,por sua habilidade de digerir tudo. Estômago exigente, capaz de resistir e de vomitar.Em cada vômito uma renúncia: a comida é imprópria para a vida.

E eu me pergunto se este tão denunciado e tão chorado fracasso da educação nacional não será antes um sinal de esperança, de que continuamos capazes de discernir o que é bom para o corpo daquilo que só é bom para o lucro. Esquecer depressa: Não é esta a forma pela qual a cabeça vomita a comida de urubu que lhe foi imposta?

Uma ideia a ser explorada: Para educar bem-te-vi é  preciso gostar  de bem-te-vi,  respeitar  seu gosto, não ter projeto  de  transformá-lo em urubu. Um bem-te-vi  será  sempre um urubu de  segunda  categoria.Talvez para se repensar a educação e o futuro da Ciência,devêssemos começar não dos currículos cardápios,mas do desejo do corpo que se oferece à educação.É isto: começar do desejo...


                              Do Livro Conversas com quem gosta de ensinar       Rubem Alves