Sempre que ouço falar em inclusão, eu me lembro que,para que ela aconteça de fato é imprescindível se resgatar a aceitação real do outro com a sua cultura,o jeito de ser, o respeito enfim. Sem isto o que pode acontecer é, no máximo, integração do diferente, não inclusão.A educação inclusiva centra-se em apoiar as qualidades e necessidades de cada um e de todos,valorizando o que cada um tem de melhor.E em um acolhimento amoroso, aceitar a participação de todos com o seu jeito de ser, e com sua cultura que pode ser diferente,mas nunca errada.E ainda há gente que diz que já não há mais preconceito! Criticar, zombar, rotular é bullying, é crime. Teoricamente sim. Mas na prática sabemos o quanto o diferente ainda é discriminado. Descobri e me recordei lendo o texto que compartilho abaixo, como uma pessoa pode "assassinar" as expectativas, os sonhos de alguém por não aceitá-la como é;por querer transformá-la à força, moldá-la no modelo padrão. E quem disse que somente este modelo é correto? A cultura do meio em que vive o carente,o mendigo,o caipira é "errada" só por não ser a da classe dominante?
Obrigada pela visita.Um forte abraça. Fique com Deus e na paz de Cristo.
Nóis Mudemo
"O ônibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belém-Brasília rumo a Porto nacional.Era abril, mês das derradeiras chuvas. No céu, uma luazona enorme pra namorado nenhum botar defeito. Sob o luar generoso,o cerrado verdejante era um presépio,todo poeira e misticismo.
Mas minha alma estava profundamente amargurada.O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento,precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... Tentei dormir.Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada,mas ela nada mais era para mim que o plano de fundo de um drama estúpido e trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira.Escola de periferia,classes heterogêneas,retardatários
heterogêneas,retardatários.Entre eles,uma criança crescida,quase rapaz...
_ Por que você faltou esses dias todos?
_ É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
_ Não se diz "nóis mudemo",menino! A gente deve dizer: nós mudamos tá?
_ Tá fessora.
No recreio, as chacotas dos colegas: Oi,nós mudemo! Até amanhã nóis mudemo!
No mesmo dia a mesma coisa:risadinhas,cochichos,gozações.
_ Pai, não vô mais pra escola!
_ Óxente! Módi quê!
Ouvida a história,o pai coçou a cabeça e disse:
_Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozação da mininada! Logo eles esquece.
Não esqueceram.,
Na quarta-feira,dei falta do menino.Ele não apareceu no resto da semana,nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que nem sabia o nome dele. Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio- Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço.Longe,um dos últimos casebres do bairro.Fui lá uma tarde.O rapazola tinha partido no dia anterior para casa dum tio, no sul do Pará.
_ É, professora, meu tio não aguentou as gozações da meninada. Eu tentei fazê ele continuá,mas não teve jeito. Ele tava chatiado demais. Bosta de vida! Eu devia di tê ficado na fazenda coa família. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente,confusa,sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma parte,num povoado à beira de Belém - Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim,um rapaz pobremente vestido,magro, com aparência doentia.
_O que é, moço?
_ A senhora não se lembra de mim , fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstitui num momento meus longos anos de sacerdócio,digo, de magistério.Tudo escuro.
_ Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas,uma resposta lacônica:
_ Eu sou "Nóis Mudemo", lembra?
Comecei a tremer.
_ Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo seu nome?
_ Lúcio- Lúcio Rodrigues Barbosa.
_ O que aconteceu com você? O que aconteceu? Ah! Fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amassô. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro,fui bóia fria,um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome,fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazê. A escola fais uma farta danada. Eu não devia tê saído daquele jeito,fessora,mas não aguentei a gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui falá direito. Ainda hoje não sei.
_ Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso.Foi demais para mim.Descontrolada,comecei a solução convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz,o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência.
O rapaz afastou-me de si suavemente.
_Chora não, fessora! A senhora não tem culpa.
Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.
Hoje tenho raiva de gramática. Eu mudo,tu mudas,ele muda,nós mudamos, mudamos, mudamos, mudaamoos,mudaaamooos... super usada,abusada,ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática
faz gato e sapato da língua materna- a língua que a criança aprendeu com seus pais, irmãos e colegas- e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimulara e fazer crescer comunicando, ela reprime e oprime cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.Hoje tenho raiva de gramática. Eu mudo,tu mudas,ele muda,nós mudamos, mudamos, mudamos, mudaamoos,mudaaamooos... super usada,abusada,ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática
E os Lúcios da vida,os milhares de Lúcios da periferia e do interior,barrados nas salas de aula: "Não é assim que se diz,menino"! Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos,amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Fique no seu lugar! Seja uma sombra!"
E siga desarmado para o matadouro da vida..."
Fidêncio Bogo
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